Os acidentes de trabalho nas usinas de açúcar e álcool ultrapassaram os da construção civil. Os dados do Ministério da Previdência Social são de 2006 e indicam que nas usinas ocorreram 14.332 acidentes de trabalho contra 13.968 na construção civil (Folha on line, 4.5.08).
Em apenas dois setores da economia foram registrados mais de 28 mil acidentes no trabalho em um único ano! Mas, segundo os dados do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, foram cerca de 1,3 milhão de acidentes de trabalho registrados em 2006 no Brasil, e no mundo, o total chega a 270 milhões de casos, com um total de 2 milhões de mortes por ano. Em cinco anos de guerra no Iraque os E.U.A mataram 1 milhão de civis.
Apesar de matar mais do que guerra, muitas empresas preferem calar à enfrentar as causas que provocam os acidentes no trabalho. Acidentes maculam a imagem ética, de preservação do meio ambiente e respeito à vida, que muitas empresas propagam, sem possuir a "mercadoria". Acidente implica em responsabilidade, danos materiais e morais, e mexe com a parte mais sensível do corpo das empresas, o caixa.
A constatação da Previdência Social era previsível. Na Vara do Trabalho de Guanambi 90% das reclamações trabalhistas de cortadores de cana-de-açúcar das usinas de São Paulo são pedidos de indenizações por danos materiais e morais em virtude de acidentes.
Jovens saudáveis com menos de 30 anos de idade são arregimentados no sudoeste da Bahia e levados para as usinas. Quando retornam, na maioria das vezes, estão mutilados, sem dedos, mãos e parte dos pés. Os acidentes se multiplicam devido a desnutrição e a fadiga de jornadas exaustivas, de vez que o salário está atrelado à produção. Sabemos que hoje um cortador de cana produz 20% a mais do que 30 anos atrás. Para ser produtivo o homem deve trabalhar no ritmo da máquina colheitadeira.
Um estudo da Professora/doutora Maria Aparecida de Morais Silva para a revista NERA _ Núcleo de Estudos e Pesquisas para a Reforma Agrária (2006), relaciona o sofrimento e a morte dos canavieiros ao processo global de racionalização econômica. A universalização da intensificação da exploração e a flexibilização das relações de trabalho submetem os trabalhadores a situações de degradação tal que produz outras formas de sofrimento, até então insuspeitas __ afirma a pesquisadora. Assim, se o karoshi mata os trabalhadores da indústria automobilística no Japão, a birôla mata os canavieiros de exaustão, por overdose de trabalho, nas usinas do sudeste do Brasil! Karoshi, segundo apurou a pesquisadora, é uma patologia do trabalho que resulta da tolerância pelo trabalhador de práticas psicologicamente nocivas e acúmulo de fadiga crônica do corpo, derivada do excesso de trabalho, que termina com o esgotamento e a morte. Para a doutora Maria Aparecida, Karoshi e birôla são termos equivalentes para designar a patologia de uma nova doença relacionada com a produção e o trabalho.
Mas cuidado, a ociosidade constrangedora num ambiente absolutamente asséptico também pode adoecer e matar, e prova disso é o assédio moral.
As gravíssimas condições de trabalho dos cortadores de cana e as contínuas denúncias de morte no local de trabalho estão sob investigação das Organizações das Nações Unidas - ONU. Mas no fórum pode estar sendo gestada uma tese infeliz e de graves conseqüências para os trabalhadores.
Não raro tenho me deparado com sentenças judiciais que reconhecem a culpa dos operários nos acidentes de trabalho. Sorrateiramente se está tentando construir uma jurisprudência __ conjunto de decisões judiciais __ a favor da racionalização econômica, premiando a negligência, o descaso do empregador e punindo o trabalhador vítima de acidente.
A invenção não é tupiniquim, apareceu inicialmente na Espanha e foi veementemente rechaçada pelo Juiz Ramón Saez Valcarcel de Los Juzgados Penales de Madrid, que numa peça exemplar se pergunta: Por Acaso os Trabalhadores se Suicidam no Trabalho?
Diante das estatísticas estarrecedoras (14 mil acidentes em um ano!) e de tudo o que se sabe acerca das condições de trabalho no corte da cana, atribuir a culpa do acidente ao canavieiro é o mesmo que admitir que os trabalhadores estejam propositadamente se suicidando no trabalho. E o que é pior, aceitar essa tese significa contrariar todos os ensinamentos oriundos das normas de prevenção de acidentes no trabalho.
A hermenêutica, quer dizer, o sentido que atribuímos às normas de segurança no trabalho, diz que a alienação do trabalho, fruto da rotina, do automatismo, da monotonia e repetitividade dos gestos, acaba fazendo com que o trabalhador relativize e desconsidere o risco. Daí porque é necessário redobrar o dever objetivo de vigilância do empregador, prepostos e encarregados para prever e neutralizar essas situações.
É dever do empregador se antecipar às possíveis negligencias do trabalhador, às suas omissões ordinárias e aos erros a que está sujeito incorrer, dada sua habitualidade com o risco. O zelo que o trabalhador emprega na realização das tarefas cotidianas faz com que se esqueça de si mesmo e descuide da própria segurança; por isso mesmo deve estar protegido para evitar o acidente.
A Constituição Brasileira (clique aqui) elegeu a dignidade humana como paradigma do direito.
Portanto, saúde, segurança e qualidade de vida são direitos fundamentais do trabalhador. A CLT atribui ao empregador a responsabilidade de proteger o empregado física, psíquica e moralmente, porque a ele, empregador, cabe os riscos do empreendimento.
Canavieiro é, sem dúvida, a espécie animal mais ameaçado de extinção do planeta. Profissionalmente é uma categoria fadada ao desaparecimento em breve com a proibição das queimadas e a mecanização da lavoura. Recomendável a adoção de medidas oficiais de preservação da pessoa humana, criando-se um piso salarial decente e uma aposentadoria especial com os rotundos lucros que o setor vem amealhando.
Aos que pensam ir ao fórum advogar a tese da culpa dos trabalhadores nos acidentes de trabalho é bom lembrar que foi a separação entre direito e ética que resultou no positivismo "ad hitlerum" e se cometeram as piores atrocidades contra a raça humana. O ato de julgar continua invocando a preocupação em realizar justiça; toda sentença deve guardar a pretensão de ser uma sentença justa e, portanto, ética.